domingo, 1 de maio de 2011

Do bem o do mal

"No fundo, não há bons nem maus. Há apenas os que sentem prazer em fazer o bem e os que sentem prazer em fazer o mal. Tudo é volúpia..."


Mário Quintana

terça-feira, 11 de janeiro de 2011

Sobre Ferreira Gullar

       De Ferreira Gullar pôde escrever Vinícius de Moraes que é o último grande poeta brasileiro. E é a última voz significativa da poesia, atalhou o nosso Pedro Dantas. Parece-me a mim, além disso, que, exceção feita de algumas peças de Mário de Andrade e também de Carlos Drummond de Andrade (mormente em Rosa do Povo), é o nosso único poeta maior dos tempos de hoje. [...] e a surpresa diante desse descobrimento casual foi o começo de uma exploração sem pausa do universo de Ferreira Gullar. Hoje sinto-me tão familiarizado com todos os seus recantos que, para a singularidade e a importância de sua contribuição, só encontro de comparável, no Brasil, a prosa de Guimarães Rosa.


Sérgio Buarque de Holanda.


Um salve ao nosso grande poeta.

segunda-feira, 10 de janeiro de 2011

O Cheiro da Tangerina

Com raras exceções
        os minerais não têm cheiro

quando cristais
        nos ferem
quando azougue
        nos fogem
e nada há em nós que a eles se pareça

exceto
os nossos ossos
os nossos
dentes
        que são no entanto
        porosos
e eles não: os minerais não respiram.

E a nada aspiram
        (ao contrário
        da trepadeira
        que subiu até debruçar-se
        no muro
        em frente a nossa casa
        em São Luís
        para espiar a rua
        e sorrir na brisa)

Rígidos em sua cor
os mineirais são apenas
extensão e silêncio.
Nunca se acenderá neles
- em sua massa quase eterna -
um cheiro de tangerina.

        Como esse que vasa
                agora na sala
        vindo de uma pequena esfera
                de sumo e gomos
        e não se decifra nela
        inda que a dilacere
        e me respingue
        o rosto e me lambuze os dedos
                                feito fêmea.
E digo
        - tangerina
e a palavra não diz o homem
envolto neste
inesperado delírio
que vivo agora
a domicílio
                (de camisa branca
                e chinelos
                sentado numa poltrona) enquanto
a flora inteira
sonha à minha volta
                        porque nos vegetais
                        é que mora o delírio.

Já os minerais não sonham
        exceto a água
        (velha e jovem)
que está no fundo do perfume.
        Mineral
ela não tem no entanto forma
        ou cor.
Invertebrada
        ajusta-se a todo espaço.
        Clara
        busca as profundezas
da terra
e a tudo permeia
e dissolve
        aos sais
        aos sóis
traduz um reino no outro
        liga
        a morte e a vida
ah sintaxe do real
        alegre e líquida!

Como o poema, a água
        jamais é encontrada em estado puro
        e pesa nas flores
        como pesa em mim
        (mais que meus documentos e roupas
        mais que meus cabelos
        minhas culpas)
        e adquire
        em meu corpo
        esse cheiro de urina
        como
        na tangerina
        adquire
        seu cheiro de floresta.

Esse cheiro
que agora me embriaga
        e me inverte a vida
        num relance num
        relâmpago
e me arrasta de bruços
        atropelado
        pela cotação do dólar.

E não obstante
se digo - tangerina
não digo a sua fresca alvorada


        que é todo um sistema
        entranhado nas fibras
        na seiva
        em que destila
        o carbono
        e a luz da manhã
(durante séculos)
        no ponto do universo
                onde chove
        uma linha azul de vida abriu-se em folhas
               e te gerou
               tangerina
               mandarina
               laranja da China
                       para
        esta tarde
        exalares teu cheiro
        em minha modesta residência)

jovem cheiro
que nada tem da noite do gás metano
ou da carne que apodrece
doce, nada
do azinhavre da morte
que certamente
também fascina
e nos arrasta
à sua festa escura
        próxima ao coito
        anal
        ao minete
        ao coma
        alcoólico
coisas de bicho
não de plantas
        (onde a morte não fede)
coisas de homem
        que mente
                tortura
        ou se joga do oitavo andar

não de plantas e frutas
não dessa
fruta
        que dilacero
e que solta
na sala (no século)
        seu cheiro
        seu grito
        sua
        notícia matinal.


Ferreira Gullar.

Unidade

As plantas sofrem como nós sofremos.
Por que não sofreriam
se esta é a chave da unidade do mundo?

A flor sofre, tocada
por mão inconsciente.
Há uma queixa abafada
em sua docilidade.

A pedra é sofrimento
paralítico, eterno.

Não temos nós, animais,
sequer o privilégio de sofrer.

Carlos Drummond de Andrade